A Guerra de Espanha (1936-1939) - A agressão imperialista

Guernica de Picasso
A Guerra de Espanha (1936-1939) - A agressão imperialista

Por Domingos Abrantes


Passados mais de 75 anos do início duma guerra que ensanguentou a Espanha durante três anos em consequência da sublevação de 18 de Julho de 1936, levada a cabo por generais fascistas contra a República e o Governo da Frente Popular, continua a suscitar profundo interesse analisar algumas causas e consequências desta guerra que marcou indelevelmente o posterior curso de Portugal, da Europa e do mundo.


 Há mais 75 anos que os acontecimentos da guerra de Espanha têm sido palco de agudos confrontos ideológicos e de não poucas falsificações históricas.

As causas que levaram à guerra e à derrota da República espanhola e suas trágicas consequências não podem ser esquecidas, como não devem ser esquecidos os que deram a vida pela causa da liberdade. Tudo o que seja menosprezar o que foi aquela tragédia para os povos dificultará a luta contra as suas causas, que se mantêm na actualidade porque radicam na natureza do imperialismo.

Numa altura em que por toda a parte se branqueia o fascismo, que as forças reaccionárias levantam cabeça, que se limitam liberdades democráticas, que o anticomunismo ganha foros de política de Estado, que, como há 75 anos, uma santa-aliança imperialista, acolitada pela social-democracia, reduz a pó elementares normas de direito internacional e arroga-se no direito de determinar os destinos dos povos, não hesitando em recorrer a acções criminosas para impor a sua vontade, torna-se um dever relembrar algumas questões sobre a guerra de Espanha.

Em Espanha travou-se a primeira grande batalha internacional entre as forças fascistas e antifascistas, entre as forças da paz e as forças da guerra.

Com a chegada de Hitler ao poder (Fevereiro/1933) as forças mais reaccionárias à escala mundial ganharam novo alento. A luta por uma nova partilha do mundo, pela revisão dos resultados da I Guerra Mundial, entrou numa nova fase, no quadro de uma profunda crise do capitalismo e de uma nova realidade que era o facto de a contradição entre o socialismo e o capitalismo se ter tornado na contradição fundamental do desenvolvimento mundial.

O anticomunismo torna-se na plataforma ideológica da acção da burguesia internacional como classe única, contra o movimento operário. A grande burguesia de todo o mundo via na Alemanha nazi a força capaz de resolver esta contradição e conseguir o que não tinha conseguido a seguir à Revolução de Outubro: esmagar a União Soviética.

Aliás, Hitler afirmaria num discurso em Munique (9/11/1936): «virá o dia em que o resto da Europa não lamentará mais a fundação do III Reich nacional-socialista, mas se regozijará desta barragem erguida diante a onda bolchevique».
(1)

É este objectivo que vai determinar o sistema de alianças inter-imperialistas, que se manifesta com toda a clareza na guerra de Espanha.

A 20 de Junho de 1935 é assinado em Londres o Pacto entre a Alemanha e a Inglaterra, considerado por Hitler o seu primeiro grande êxito em termos de política externa: «o Pacto significava, em primeiro lugar, que a Inglaterra reconhecia oficialmente o rearmamento alemão, contra o Tratado de Versalhes, e, em segundo lugar, que as questões do desarmamento e da segurança colectiva perdiam significado».
(2)

No Outono desse ano, Hitler discursando perante os magnatas da indústria e das finanças da Alemanha declara: «Agora podemos assegurar que o Estado se tornou o mais importante cliente da indústria e que pretende zelar pelo seu desenvolvimento. Vou conferir à Alemanha um poder inegualável no mundo. Canhões: é esta a minha política externa». (3)

Estava dado o passo para uma nova escalada na política militarista e belicista da Alemanha, com a complacência e a conivência das chamadas democracias ocidentais. Vários outros se iriam seguir, sempre pautados pelo mesmo objectivo: uma nova guerra.

Se a instauração da República espanhola já havia causado inquietações, o triunfo das Frentes Populares em França e em Espanha, mostrando que na base de amplas alianças populares com a classe operária e os comunistas era possível erguer uma sólida barreira ao fascismo, encheu de pânico a burguesia mundial por antever que o exemplo da França e da Espanha podia estimular a luta de outros povos contra a ameaça fascista e a guerra. Esmagar as Frentes Populares, e em particular a espanhola, tornou-se, pois, no grande objectivo imediato.

A Espanha tinha uma enorme importância estratégica-militar e económica para a Alemanha e a Itália, e para Portugal por razões de defesa do regime.

Em Espanha, a evolução da política da Frente Popular, pelo sistema de alianças marcado pela influência da classe operária e do Partido Comunista, pela natureza das transformações políticas, económicas e sociais, suscitava apreensões redobradas. Quando tudo parecia caminhar para uma Península Ibérica fascista, eis que surge a «ameaça» de um Estado comunista e uma profunda alteração na correlação de forças. A 21 de Março de 1936, o embaixador português em Londres expõe ao secretário de Estado inglês, a importância do PCE e a sua influência dentro do governo espanhol, alertando para os perigos que representaria para a Europa a instauração de um Estado comunista em Espanha, perigo que via iminente, tese que vai determinar toda a intervenção de Portugal na guerra de Espanha.

Ao definir a guerra de Espanha como uma guerra internacional embora desenrolada em território nacional, Salazar tinha bem a percepção, ao contrário de outros governantes ditos democráticos, do que ali se iria decidir.

O que verdadeiramente se travou em Espanha, mais do que uma guerra civil, foi uma guerra desencadeada contra um Estado soberano, membro da Sociedade das Nações, por um grupo de Estados que invadiram a Espanha, com centenas de milhar de efectivos das suas tropas regulares, equipadas até aos dentes, uma intervenção que se iniciou logo nos primeiros dias do conflito para esmagar a República da Frente Popular.

A Itália enviou para Espanha, além de toneladas de armas ligeiras e de bombas, 950 tanques e carros de combate, 91 barcos de guerra e submarinos e mais de mil aviões. No que se refere à Alemanha, o volume de material de guerra terá sido muito semelhante. A acção impune dos submarinos «fantasmas» no Mediterrâneo, mas que todos sabiam serem alemães e italianos, contra o abastecimento marítimo da República espanhola constituiu poderoso apoio aos golpistas, como o foi a intervenção da aviação alemã e italiana no bombardeamento de cidades e de tropas republicanas em combate.

Na guerra de Espanha estiveram envolvidos à volta de 80 mil soldados alemães e 100 mil italianos (segundo P. Nenni terão sido 120 mil).

Em Setembro de 1940, Hitler, em conversa com Ciano (MNE de Itália), afirmou: «sem o apoio da Alemanha e da Itália, Franco não existia.»
(4)

Embora a intervenção militar de Portugal em Espanha não se possa comparar, por razões óbvias, à da Alemanha e da Itália, não pode, contudo, ser minimizada. O número de militares portugueses a combater em Espanha, incorporados nas tropas franquistas e até nas italianas e alemãs, os designados «Viriatos», recrutados pelo Ministério de Guerra, sendo embora díspar, ultrapassou os 20 000. A ser verdadeiro terem morrido em Espanha 10 000 militares portugueses (5), número que estará subavaliado.

Não foi pouco relevante para os golpistas o fornecimento de munições, espingardas, combustível, meios de transporte no decurso da guerra e, sobretudo, numa altura em que a sublevação estava na iminência de ser esmagada.

Pela posição geográfica, Portugal constituiu uma «placa giratória» absolutamente determinante para o triunfo dos golpistas. Aqui estavam instalados os principais núcleos da conspiração contra a República espanhola. Aqui funcionou um centro de comunicações dos sublevados, enquanto estes tiveram as suas forças isoladas umas das outras. Do mesmo modo, italianos e alemães instalaram no nosso país centros operacionais e de estadia para os seus militares em trânsito para Espanha.

Portugal funcionou como entreposto para o desembarque do vasto arsenal de material de guerra alemão e italiano destinado aos golpistas, montou um aparelho propagandístico (jornais e rádio) para denegrir a República e exaltar os «nacionalistas», reprimiu os refugiados republicanos, não só dificultando a sua fuga, mas também prendendo e entregando-os aos fascistas, tendo muitos deles sido fuzilados.

O aparelho diplomático português, na prática a funcionar como «aparelho» diplomático dos golpistas e da «Junta de Burgos», prestou serviços inestimáveis à causa da sublevação dos fascistas espanhóis, defendendo e justificando a sua legitimidade, actuando como porta-voz de reivindicações suas, intervindo junto de governos amigos e do Vaticano para que reconhecessem o chamado governo de Burgos, pedindo ao Brasil para o fazer junto de países latino-americanos, e ao governo do Chile, quando este país presidia à Assembleia da Sociedade das Nações, para sabotar a tentativa de aí se discutir a questão espanhola, e junto de Hitler e Mussolini para que fosse reforçado o apoio militar aos golpistas, etc.

Para além da sua acção própria, foram regulares e constantes a intervenção junto da Grã-Bretanha, a pedido de Franco, para pressionar Paris a garantir o encerramento e a vigilância das fronteiras.

A acção diplomática de Portugal, em conluio com a Inglaterra e a França, impondo, em nome da neutralidade, a saída da esquadra da República das águas de Tanger, representou a primeira grande derrota para a Espanha republicana e um apoio decisivo aos sublevados para conseguirem transportar as suas tropas para solo espanhol, protegidos por navios da esquadra alemã que, sem que aqueles países se opusessem, passaram a navegar naquelas águas, o que não acontecia desde a I Guerra Mundial.

Toda a intervenção de Portugal a favor dos sublevados, incluindo a acção repressiva contra os republicanos, foi dirigida pessoalmente por Salazar, mesmo nos mais pequenos pormenores. Segundo o Encarregado de Negócios alemão em Lisboa, «o Presidente do Conselho Salazar é quem facilita aos revolucionários a aquisição de todo o tipo de material. Ele substitui pura e simplesmente os empregados das alfândegas que não lhe parecem de confiança».
(6) .

A guerra movida contra a República espanhola processou-se sob o «chapéu» da neutralidade, designada de «não-intervenção», uma descoberta das chamadas democracias ocidentais, designadamente a Grã-Bretanha, governada por conservadores, e a França da Frente Popular, governada pelo socialista L. Blum, o que, em termos práticos, conduziu a deixar as mãos livres aos agressores, paralizando a acção de países eventualmente inclinados a apoiar a República espanhola. Teve ainda como objectivos arredar a questão espanhola do âmbito da Sociedade das Nações e iludir a opinião pública democrática quanto à natureza daquela guerra, sobre os seus verdadeiros responsáveis e o seu próprio envolvimento no apoio aos fascistas.

A farsa da «não-intervenção» não foi um erro de cálculo. Bem pelo contrário, ela visou ajudar à derrota da República espanhola por outros meios. Como diria o MNE de Espanha, no Plenário da Sociedade das Nações (25/9/1936): «o que se chama de não-intervenção é a política de intervenção directa, efectiva e positiva em favor dos rebeldes»
(7). A política de não-intervenção foi um golpe muito duro aplicado por uma santa-aliança internacional à República espanhola.

A pretensa neutralidade subverteu princípios elementares do direito internacional, ao colocar no mesmo plano um governo legítimo de um Estado membro da Sociedade das Nações e os golpistas e os invasores.

Afastada a frota republicana da Baía de Tanger, fechada aos republicanos e aberta aos golpistas a longa fronteira portuguesa, e com Portugal transformado em base logística de apoio militar, económico e diplomático, os esforços concentraram-se em ganhar a França – país com fronteira com a Espanha a Norte – para uma acção activa em defesa da dita neutralidade, tarefa a que o governo socialista de L. Blum não se fez rogado.

Apesar do carácter inócuo e ineficaz do «Comité Internacional de Controlo», designado «Comité de Londres» – estrutura criada para fiscalizar a política de «não-intervenção», mas que, segundo o memorando inglês, só podia «fazer recomendações e não tomar resoluções», e que, na opinião dos governantes ingleses, Eden e Halifax, apenas era «destinado a afastar campanhas injustas e malentendidos»
(8) –, Salazar tinha enormes reservas em relação a tal Comité. Mesmo já depois de Portugal lhe ter dado a sua adesão, ainda que condicionada, e manter uma atitude obstrucionista aos seus trabalhos e a propostas pretensamente fiscalizadoras, não deixava de criar dificuldades, nomeadamente à França, onde os comunistas e outros sectores democráticos pressionavam o governo para auxiliar a República espanhola.

O representante da França no Comité considerava incompreensível a posição do governo português em continuar a obstruir os seus trabalhos, dado saber ser impossível o Comité adopar qualquer medida efectiva de controlo e as medidas processuais dilatórias evitaram qualquer decisão, pelo que pede a Portugal que altere a sua posição «para sair de momento das dificuldades e a fim de dar a impressão à opinião pública de que o Comité trabalha».
(9)

A actividade do Comité saldou-se por uma completa ineficácia, a não ser deixar as mãos livres aos agressores. Por sistemática rejeição de provas, nenhuma queixa foi provada quanto ao papel de Portugal como placa logística de apoio aos golpistas, tendo sido, contra todas as evidências, elogiado por várias vezes pelo governo inglês pela sua política de «neutralidade».

Dando conta da resposta de Eden ao Parlamento britânico à acusação de que Portugal estava a funcionar como placa giratória para o fornecimento de armamento a Franco, o embaixador de Portugal em Londres, em telegrama para o MNE informa que Eden «negou mais uma vez – itálico nosso – que Portugal servisse de meio para entrada de armamento em Espanha», acrescentando que Eden, «no seu discurso, fez calorosa defesa do nosso país».
(10)

E, no entanto, como comprova a abundante documentação oficial, o goverrno inglês (como o governo francês, americano e outros) sabia que as acusações da União Soviética e do governo espanhol quanto ao papel de Portugal eram bem fundadas, porquanto tinham informações ao pormenor, obtidas pelos seus canais diplomáticos e de espionagem, sobre as vias de penetração do armamento em Espanha, dos desembarques de armamento em portos portugueses, das características do armamento usado por alemães e italianos, o número de soldados destes países e portugueses a combater em Espanha, o bombardeamento de cidades espanholas a partir de aeroportos portugueses, etc.

A embaixada britânica em Lisboa desde o início da guerra que informava regularmente o governo inglês do papel desempenhado por Portugal, descrevendo pormenorizadamente as facilidades concedidas aos rebeldes nas suas entradas e saídas do país», referindo que «o que o ministro dos Negócios Estrangeiros afirma sobre a neutralidade de Portugal é absurda».
(11)

O governo americano estava igualmente informado dos efectivos militares alemães e italianos a combater em Espanha, do volume e da natureza do armamento e dos aviões alemães e italianos utilizados, das inovações tecnológicas desse armamento, bem como de que a Alemanha se servia da guerra de Espanha para testar material de guerra.

A luta da União Soviética e dos governos de Espanha e do México, dos comunistas e das forças antifascistas não conseguiu derrotar a política de «não-intervenção». A própria Internacional Socialista, que jamais deu seguimento prático à proposta da Internacional Comunista para que, na base de um programa coerente, se criasse uma frente única em defesa da República espanhola, tinha uma posição de sim, não, mas também. P. Nenni, participante nas reuniões da Internacional Socialista, sintetizando de forma precisa as decisões desta contra a «não-intervenção», dizia que estas só eram válidas quando o Partido Socialista estava na oposição. Se estava no governo, já não eram aplicadas.
(12) .

O papel do Vaticano, das igrejas de Espanha, de Portugal, dos Estados Unidos e de vários outros países não teve nada de despiciendo no apoio à sublevação franquista e ao fascismo em geral, integrando por vontade própria o campo dos responsáveis pelo esmagamento da República espanhola e do milhão de mortos e de crimes abomináveis, elevados à categoria de cristãos e civilizacionais.

A actividade espiritual, ideológica e propagandística da Igreja espanhola tinha como fio condutor a defesa de interesses bem terrenos: a recuperação dos imensos privilégios perdidos com a República e cuja reposição exigia de Franco caso o chamado nacionalismo triunfasse: os escandalosos subsídios pela via do Orçamento de Estado; o domínio de enormes propriedades; a entrega ao foro da Igreja de serviços como o ensino, a censura, os presídios, os reformatórios, etc.. e, não menos importante, a reposição do estatuto de Igreja do Estado.

Em telegrama da Legação Portuguesa no Vaticano para o MNE português (29/7/1936) dá-se conta de que o Vaticano considerava gravíssimo pela amplificação subversiva que podia causar o facto do Governo da República «ter armado todos populares, operários camponeses, menores, mulheres». E numa atura em que os golpistas já tinham massacrado populações inteiras, o embaixador português informa ainda que o Vaticano verberava cenas de massacres, torturas e incêndios «cometidos por turbas armadas pelo governo de Madrid».
(13)

O Vaticano foi dos primeiros Estados a reconhecer o governo de Burgos. E foi participante activo na farsa da «não-intervenção», defendendo mesmo que se a França oferecesse armas à República espanhola isso poria em perigo a paz na Europa. .

A guerra de Espanha constituiu um grande maná para o mundo dos negócios. No dizer de Raúl Moralo, o general Franco, discursando na Galiza em 1941, «com uma mistura de cinismo e de realismo definiu de maneira lúcida a guerra» (...) «a nossa cruzada foi a única em que os ricos foram para a guerra e voltaram ainda mais ricos».
(14)

Mas deveria ter especificado que os grandes beneficiários da guerra foram a Igreja Católica que recuperou os inúmeros privilégios e bens perdidos com a República, o que fez da Igreja ferverosa defensora da santa cruzada fascista; a nobreza, que recuperou os latifúndios expropriados que tinham sido distribuídos aos camponeses com a reforma agrária levada a cabo pela Frente Popular; e o patronato que viu restaurado o seu poder discricionário e a possibilidade de intensificar a exploração dos trabalhadores. Poderia ainda ter acrescentado os «capitães» da indústria de guerra e aqueles a quem foram entregues colossais riquezas espanholas.

No conjunto dos objectivos estratégicos do nazi-fascismo alemão e italiano, o económico não era menos relevante, sobretudo para a Alemanha.

A avaliação da importância estratégica que a Alemanha atribuía às riquezes minerais espanholas para a sua indústria de guerra – que se tornara altamente florescente depois do Acordo de Londres – é-nos dada pelo comerciante alemão e membro do partido nazi, J. Bernhard, num relatório ao seu governo, em 1937: «O objectivo dos nossos interesses económicos em Espanha deve consistir numa penetração profunda nas principais fontes de riqueza espanhola (...). O problema mineiro é de tremenda importância sob todos os aspectos». E concluía: «o êxito ou fracasso dos nossos esforços na mineria espanhola determinarão se a assistência à Espanha foi acertada ou desacertada»
(15)

Quando começa a II Guerra Mundial (Setembro/1939) já a Alemanha tinha recebido da Espanha mais de um milhão de toneladas de minérios (pirites de ferro, estanho, antimónio, etc.).

E a liberal e democrática América? Defensora de uma política de rigorosa neutralidade que colocava no mesmo plano os agressores e os agredidos, não fez poucos negócios com o apoio aos golpistas, vendendo-lhes armas, toneladas de gasolina, milhares de camiões para transporte de tropas e outros equipamentos.

Em 1945, um membro do governo de Franco declarava que jamais teriam ganho a guerra «sem o petróleo americano, sem os camiões americanos, sem os créditos americanos».
(16). Ainda que represente uma boa dose de injustiça para com a Alemanha nazi, a Itália e Portugal fascistas, a afirmação não deixa de ter um fundo de verdade.

Os grupos económicos e financeiros portugueses, respondendo ao apelo de Salazar para apoiarem os sublevados, fizeram também grandes negócios com a guerra de Espanha. A fábrica de Barcarena trabalhava noite e dia para abastecer os exércitos de Franco. O industrial conserveiro Ramirez, antigo Ministro do Comércio e há muito ligado aos fascistas espanhóis, foi encarregue por Salazar de regular o auxílio alemão destinado às tropas franquistas desembarcado no porto de Lisboa e de cuidar do fornecimento de produtos alimentares.

Mas, pelo apoio logístico e financeiro prestado aos golpistas quando estes se encontravam em sérias dificuldades, o monopolista e fascista Alfredo da Silva ocupa um lugar muito especial. O facto de não terem conseguido conquistar Madrid, Barcelona e muitos outros pontos estratégicos, e de o essencial da Marinha e da Força Aérea se ter mantido leal à República, tornava urgente transportar para o interior da Espanha as tropas estacionadas em Marrocos, nomeadamente as tropas mouras. O apoio aéreo prestado pela Alemanha e Itália por muito importante que fosse, e foi, não era suficiente. É nestas circunstâncias que a aceitação por Alfredo da Silva do pedido de Salazar para que pusesse a sua frota mercante ao serviço do transporte de tropas, bem como do transporte do armamento importado, e negociasse créditos na Caixa Geral de Depósitos, a canalizar para as forças fascistas, se revestiu de grande significado na consolidação de posições por parte dos golpistas.

Já depois da guerra, Jorge de Mello, neto de Alfredo da Silva e novo senhor da CUF, veio confirmar o pedido de Salazar e a aceitação pelo avô, ao dizer: «E o avô lá mandou os navios da Sociedade Geral para trazer os mouros»
(17). Jorge de Mello foi condecorado com a Grã-Cruz de Mérito Civil pelo general Franco em reconhecimento da Espanha pelo apoio do seu avô à causa nacionalista.

Dinheiro foi coisa que nunca faltou aos golpistas, que não tiveram grandes dificuldades em obter empréstimos no exterior, incluindo Portugal. «O primeiro de todos, três semanas após o início da guerra civil, traz o carimbo duma Sociedade General de Comercio, Industria e Transporte, de Lisboa. Mais tarde veio outro, da Caixa Geral de Depósitos, em Fevereiro de 1938, e do Banco de Portugal já em 1939».
(18)

Ricardo Espírito Santo, íntimo de Salazar e homem de confiança dos nazis, fervoroso e activo apoiante da causa fascista em Espanha, «abre com aval do governo uma conta ilimitada a favor de Franco para este fazer face às despesas de guerra». (19)

A participação dos grupos monopolistas portugueses na guerra civi de Espanha a favor dos sediosos fascistas, por intervenção directa do Estado, teve como contrapartida o reforço do poder dos monopólios; o acelerar do processo de concentração e centralização do capital; o abrir caminho à criação de uma situação em que o Estado fascista e monopólios se confundiam. .

Numa situação em que, a 18 de Julho de 1936, «somente 200 oficiais em 10 000 permaneceram leais ao juramente à República»
(20), o governo da Frente Popular, apoiando-se na energia revolucionária das massas, conseguiu num muito curto espaço de tempo, reforçar a capacidade defensiva da República, forjando um exército de novo tipo, verdadeiramente popular, no qual se fundiam como um todo indissolúvel a energia revolucionária das massas, com a indispensável disciplina militar, o conhecimento e uso das técnicas militares e a acção sob um comando único, sem o que não era possível fazer frente a forças armadas altamente treinadas e dispondo de colossais meios bélicos.

Cabe ao PCE a honra e a glória de ter contribuído decisivamente para a criação destas forças armadas. O PCE não se limitou a teorizar a necessidade de um exército de novo tipo, tomou nas suas mãos a criação desse exército. Defendendo a congregação de militares patriotas, operários, camponeses e intelectuais – das fileiras das quais saíram corajosos e talentosos chefes militares – a Frente Popular criou uma força militar que, conjuntamente com os internacionalistas vindos de mais de 50 países, deu mostras nos campos de batalha em terra de Espanha do verdadeiro heroísmo, da luta abnegada por um ideal libertador.

A Espanha Popular permanecerá como exemplo de quanta abnegação é capaz um povo determinado a defender a sua soberania, a liberdade e as conquistas que lhe abriam caminho a uma nova vida.

Apesar da sua heroicidade, o povo Espanhol foi derrotado. A desproporção de forças e de meios era enorme.

O apoio da União Soviética, situada a milhares de quilómetros de Espanha, a solidariedade dos comunistas, dos antifascistas do mundo não tiveram força bastante para vencer uma vasta e poderosa santa-aliança composta pela tríade nazi-fascista (Alemanha, Itália e Portugal) e pela tríade democrático-liberal (Inglaterra, França e Estados Unidos e seus respectivos satélites), acolitadas pelo Vaticano.

Duvidamos que Eden (discurso de Dezembro de 1936) acreditasse mesmo que apesar da «política de não-intervenção em Espanha» ter falido e das «suas imperfeições e flagrantes quebras, reduzira o risco de uma guerra europeia».
(21)

Duvidamos igualmente que Chamberlain acreditasse que com o Pacto de Munique – uma capitulação em toda a linha que para os salazaristas mostrava a determinação da Inglaterra acabar de vez com a influência soviética na Europa – tivesse ficado assegurada a paz no mundo.

A política de «não-intervenção», a política dita de apaziguamento de Hitler e a participação no esmagamento da República espanhola, seguida pelas ditas democracias ocidentais, mergulhou o mundo na II Guerra Mundial, a mais sangrenta de todas as guerras, começada com a guerra de Espanha e que causou aos povos, incluindo aos povos da Inglaterra e da França, enormes sofrimentos.

Dolores Ibarruri, «La Passionaria», quando discursava em Paris (8/9/1936) – onde se deslocara para solicitar a L. Blum, chefe do governo da Frente Popular de França, que disponibilizasse ao governo legítimo de Espanha as armas necessárias à sua defesa e em vez de armas não obteve mais do que lágrimas pela situação do povo espanhol – avisara: «Não deveis esquecer que Espanha não luta só pela sua independência, mas pela liberdade do mundo e a paz universal. (...). Hoje somos nós, mas se deixais que o povo espanhol seja esmagado, sereis vós, será toda a Europa que se verá obrigada a fazer frente à agressão da guerra».
(22). Dolores não se enganou.

Terminada a guerra de Espanha, com a Alemanha já altamente reforçada do ponto de vista militar, ocupando posições após posições por cedências e convivências das outras potências imperialistas, o desencadear da II Guerra Mundial entrou no campo das execuções práticas.

A 1 de Setembro de 1939, cinco meses depois de terminada a guerra de Espanha, a Alemanha invadia a Polónia. Começava a II Guerra Mundial.

O espectáculo representado por soldados alemães de suástica desfraldada a desfilarem triunfalmente por uma Madrid em ruínas, iria repetir-se tragicamente em muitas outras cidades europeias.

As bombas alemãs, testadas e aperfeiçoadas em Espanha, iriam ser despejadas às toneladas sobre milhares de cidades da Europa pela aviação de Goering. O crime de Guernica, cujos responsáveis os governantes das chamadas democracias ocidentais se recusaram a condenar, iria repertir-se pela Europa fora. O milhão de mortos em Espanha iria multiplicar-se dezenas de vezes.

O Partido Comunista Português desde o primeiro momento que esteve inequívoca e solidariamente ao lado da luta do povo espanhol, desenvolvendo acções de solidariedade sem paralelo com qualquer outra força política. Em Espanha muitos comunistas portugueses combateram e alguns lá morreram para que o povo espanhol, o nosso povo, os povos do mundo pudesssem viver em paz e liberdade e decidir livremente dos seus destinos.

 .

Notas
(1) Alam Bulbok, «Hitler», Tomo 1, ed. Marabout Université, p. 347.
(2) «O Livro de Hitler», org. Henrik Erberle e Mathias Uhl, Aletheia, p. 38.
(3) Idem, p. 37.
(4) «Guerra e Revolução em Espanha, 1936-1939», Tomo I, ed. Progresso, Moscovo, p. 206.
(5) Rui Alves, citando dados do Major Botelho Moniz, in «Quem foram os Viriatos do AR», in História n.º 35, Setembro de 1981.
(6) «Guerra e Revolução em Espanha, 1936-1939, ob. cit., p. 218.
(7) «A Guerra Civil de Espanha - Salazar, Ministro Negócios Estrangeiros do Governo de Burgos, in História n.º 82, 1985, p. 39.
(8) IAN/TT, AOS/CO/NE - 9B, Cx365
(9) Idem.
(10) Idem.
(11) Miguel F. de Faria, «Alfredo da Silva e Salazar», p. 294, citando carta de Charles Dodd, secretário da embaixada britânica para o Foreign Office, 8/8/1936.
(12) P. Nenni, «Spagna», Milão, 1958, p. 90.
(13) Telegrama da Legação de Portugal em Roma para o MNE (29/7/1937), IAN/TT, AOS/CO/NE - 9B, Cx 365
(14) Viale Moutinho, «No Passaran», in Prefácio, Notícias Editora, p. 14.
(15) «Guerra e Revolução em Espanha, 1936-1939», ob. cit., p. 209.
(16) Varela Gomes, «A Guerra de Espanha», ed. Fim de Século, 2006, p. 75.
(17) Pedro Jorge Castro, «Salazar e os Milionários», p. 138.
(18) António Loução, «Conspiradores e Traficantes», ed. Oficina do Livro, 2005, p. 34.
(19) Varela Gomes, ob. cit., p. 75, citando Tamanes in «História de Espanha».
(20) P. Nenni, «Espanha 1936-1939», ed. Palas, p. 15.
(21) Telegrama do embaixador de Londres, IAN//TT/AOS/CO/NE - 9B, Cx 365
(22) «Passionária, Memória Gráfica», Madrid, 1985, p. 80.




Texto originalmente publicado na Revista O Militante




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