A questão do horário de trabalho - A actualidade de Marx

A questão do horário de trabalho - A actualidade de Marx
Por Américo Nunes
   

No VIII capítulo de O Capital – o dia de trabalho – Marx trata exaustivamente a questão da jornada de trabalho diário, a luta dos trabalhadores pela sua limitação, a evolução histórica dessa luta, e os seus resultados, até à reivindicação universal dos três 8x8X8 pela Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), em 1866. Oito horas de trabalho diário, oito para lazer, convívio familiar e cultura, e oito para dormir e descansar.

Tal como nas questões essenciais da sua análise da sociedade capitalista e da sua teoria económica, social e política, também nesta matéria a sua actualidade continua a ser impressionante. A leitura ou releitura deste capítulo da obra magna do grande filósofo é obrigatória para a compreensão total do significado das recentes propostas do governo de direita para o aumento de meia hora de trabalho diário, a criação dos bancos de horas e a eliminação de feriados.



Vejamos o que sobre o assunto afirma Marx em termos gerais, com o seu rigor científico e também com sua ironia acutilante: «Mas o que é um dia de trabalho? É de qualquer modo menos do que um dia de vida natural. Em quanto? O capitalista tem a sua própria opinião... o tempo durante o qual o operário trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho por ele comprada. Se o operário consome o seu tempo disponível para si próprio está a roubar o capitalista.

O capitalista faz então apelo à lei da troca de mercadorias. Ele, como qualquer outro comprador, procura obter o maior proveito possível do valor de uso da sua mercadoria. De repente, porém, eleva-se a voz do operário, que estava emudecida na tempestade e ímpeto do processo de produção:

A mercadoria que te vendi distingue-se da outra chusma de mercadorias pelo facto de o seu uso criar valor, e maior valor do que ela própria custa. Foi esta a razão porque tu a compraste. O que, do teu lado, aparece como valorização de capital é, do meu lado, dispêndio em excesso de força de trabalho... Constantemente me pregas o evangelho da “poupança” e “abstinência”. Muito bem! Eu quero, qual um ecónomo razoável e poupado, economizar o meu único haver, a força de trabalho, e conter-me de qualquer louca dissipação da mesma.» (
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Aos avanços dos trabalhadores na conquista sucessiva da redução da jornada de trabalho diário através da luta durante os últimos 150 anos, o capital foi respondendo com o aumento da produtividade através de maquinarias, novas tecnologias, inovação, reorganizações e reestruturações de empresas e actividades, com mil e uma habilidades organizativas, e fraudes para tornear a lei, na organização dos horários de trabalho, transformando todo o período normal de trabalho em tempo de trabalho efectivo, eliminando pausas, inventando as mais diversas flexibilizações, e aumentando por esta via a intensidade e ritmos de trabalho dentro dos limites diários estabelecidos.

De tal modo se sofisticaram as diversas formas de organização e gestão do tempo de trabalho que na actualidade a aparente redução dos horários pode resultar no seu contrário. Mas ao que assistimos neste momento em Portugal é a uma tentativa de inversão da marcha da história. Propõe-se de forma descarada o próprio aumento formal da jornada diária de trabalho.

Analisemos as propostas e intenções divulgadas pelas troikas interna e externa:

O aumento de meia hora diária de trabalho não pago, 2,5 horas por semana, significaria o equivalente a um mês anual de salário não recebido pelo trabalhador. A acrescer a esta redução salarial, os patrões somariam ainda a provável redução do valor hora, ao qual estão indexadas diversas prestações legais e convencionadas, valor que seria ainda utilizado no cálculo para o pagamento do trabalho em dias de descanso, feriados, e das horas extraordinárias, horas extraordinárias que por sua vez também seriam eliminadas ou reduzidas como veremos adiante.

Através da famosa invenção dos «bancos de horas» para dentro dos quais o Governo quer mandar a meia hora referida, bancos descritos até por algumas almas bem-intencionadas como favoráveis para os trabalhadores, o patronato pretende matar não dois, mas vários coelhos de uma só cajadada. Utilizaria estas horas sempre à sua disposição, no trabalho em dias de descanso e feriados, agora pagos pelo menos a dobrar, em horas de trabalho extraordinário que deixariam de o ser, agora pagas pelo menos a mais 100%, e aquando dos picos de produção ou quando seja necessário trabalho a mais para cumprir prazos de entrega e noutras situações do seu interesse, que não do interesse do trabalhador que teria de estar disponível a qualquer hora ou dia. Após toda esta «marosca», temendo que os capitalistas ainda possam ter de recorrer a algum trabalho extraordinário, o Governo propõe-se impor por lei a redução do preço das horas extra em 50%. Na sua tentativa de imposição de uma redução salarial pela violência, os sacripantas tiraram também da cartola uma proposta para a eliminação de alguns feriados.

É bem de ver que por cada feriado que viesse a ser eliminado seriam mais oito horas de trabalho não pago a acrescer ao tempo de trabalho nas médias mensal e anual. Cabe aqui uma referência à notícia ventilada na comunicação social de que a Igreja Católica estaria na disposição de «dar» aos patrões alguns feriados religiosos. Será possível que a Igreja se arrogue ser proprietária dos feriados? Que pense ter o direito de aumentar ela própria o tempo de trabalho «não pago» dos trabalhadores por esta via? Parece que sim. O porta-voz da Conferência Episcopal vai ainda mais longe, impõe como condição para a Igreja «ceder» dois feriados santos que o Governo se disponha a eliminar dois feriados civis. (
2) Ao mesmo tempo demonstra uma hipocrisia avassaladora quando afirma estar contra o Orçamento do Estado por este «revelar uma chocante insensibilidade social» e «uma drástica redução dos rendimentos disponíveis das famílias o que provocará um aumento drástico da incidência da pobreza e das desigualdades» (3), tudo isto infelizmente bem verdadeiro, como sabemos. Grande hipocrisia, porque não é crível que o Padre Manuel Marujão e a Conferência Episcopal desconheçam que ao «oferecer» quatro feriados (4) de trabalho, 48 horas anuais de trabalho não pago aos capitalistas estão ao mesmo tempo a propor a equivalente redução do salário dos trabalhadores. Menos crível ainda é que desconheçam que a primeira causa de pobreza das famílias e das desigualdades são os baixos salários.

Depois de consagrados pela prática consuetudinária e fixados por via convencional através da luta dos trabalhadores e pelos sindicatos ao longo de gerações, consagrados depois na lei pelos poderes políticos, a Igreja é dona dos feriados!? Claro que não. Os feriados são em primeiro lugar um direito dos trabalhadores, com impacto no tempo de trabalho, no salário, no lazer, e com valores simbólicos e culturais diversos. É também um direito de qualquer outro cidadão seja trabalhador ou não.

O roubo do 13.º mês e do subsídio de férias, para já de uma só vez a centenas de milhares de trabalhadores, e a sua projectada eliminação definitiva pela sua absorção no salário mensal, que passaria o número de salários anuais de 14 para 12 por ano, que rapidamente seriam desvalorizados quer pela inflação, pelos impostos, a sua não actualização em termos reais, bem como a redução das indemnizações por despedimento, coroam uma das mais brutais tentativas de sempre de redução coerciva dos salários e das pensões dos portugueses.

A esta autêntica declaração de guerra aos trabalhadores, que incorpora ataques a muitos outros direitos, estes já responderam de forma intensa, com manifestações, greves sectoriais e a greve geral de 24 de Novembro, resposta que seguramente continuará e se intensificará até que a ofensiva capitalista seja travada.

À primeira vista pode pensar-se que os capitalistas inventam constantemente formas novas de exploração dos trabalhadores. Haverá algumas novas formas, mas no que toca à duração do tempo de trabalho, o principal instrumento que usam para essa exploração, tocam a mesma música há mais de 200 anos, limitando-se a introduzir variações constantes ao tema.

No capítulo de O Capital atrás referido, o génio de Marx não se debruça apenas sobre a duração da jornada de trabalho na perspectiva do capitalista e na do operário. Desmonta também o que pretende o capital com o trabalho infantil e de mulheres; o trabalho por turnos e nocturno; o encurtamento do tempo para as refeições ou a sua tomada antes da entrada ou depois da saída da fábrica. Aponta os intervalos ou intermitências no horário como forma de estender o dia de trabalho e de ter o trabalhador à disposição mais tempo retirando-lhe tempo que precisa para o seu descanso e necessidades espirituais e sociais «cujo âmbito e número são determinadas pelo estado geral da civilização.»

Após a conquista pelos trabalhadores das 10 horas por dia, Marx verifica que «durante o período de 15 horas fabril, o capital atraía o operário ora por 30 minutos, ora por uma hora e repelia-o fora da fábrica, açulando-o daqui para ali em pedaços de tempo dispersos, sem nunca o largar até o trabalho de 10 horas ficar completo. Tal como no palco, estas personagens tinham de entrar, alternadamente, nas diversas cenas dos diversos actos. Mas tal como um actor pertence ao palco durante a duração da peça, assim pertenciam agora os operários, durante 15 horas, à fábrica, não contando com o tempo de ir i vir para ela. As horas de repouso, transformavam-se assim em horas de ociosidade forçada, que impeliam o jovem operário para a taberna e a jovem operária para o bordel... Eles haviam agora virado a medalha. Pagavam salário de 10 horas para disporem por 12 ou 15 horas das forças de trabalho.» (
5)

Como se vê, brilhante, e actual. Só teremos que substituir taberna e bordel por outros locais, na melhor das hipóteses salas ou bares disponíveis para o efeito dentro das empresas.

E Marx conclui: «A criação de um dia de trabalho normal é, pois, o produto de uma guerra civil de longa duração, mais ou menos dissimulada, entre a classe capitalista e a classe operária... Para «protecção contra a serpente dos seus tormentos, os operários têm de juntar as suas cabeças e, como classe, impor uma lei de Estado, um impedimento social superpoderoso que os impeça a eles próprios de, por contrato de livre vontade com o capital, se venderem a si e à sua descendência até à escravatura e à morte.» (
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«Guerra civil dissimulada» que continua noutro contexto social e histórico demonstrando 150 anos depois a cientificidade das teses de Marx.

Nos dias de hoje, continuam a ser numerosos, sofisticados, fraudulentos ou brutais, os vários métodos utilizados pelo patronato para subverter a seu favor a jornada de trabalho. O trabalho a tempo parcial; o contrato ao dia e à hora, sem dia de descanso ou férias, de que são principais vítimas os emigrantes; o desconto das pausas na contagem do tempo de trabalho; a introdução de intervalos desmedidos e numerosos na organização do horário; as falsas isenções de horário de trabalho, ou as horas extraordinárias não pagas.

O trabalho por objectivos sucessivos, forma moderna da «empreitada», a contratação da força de trabalho de «falsos trabalhadores por conta própria» (recibos verdes) e ainda, o medo de não ser promovido, de perder o prémio, ou o emprego, que empurram os trabalhadores, incluindo os quadros intermédios, para o prolongamento indefinido do horário diário, e até para o trabalho aos sábados, feriados e aos domingos, sem remuneração.

Depois do percurso histórico de lutas que nos trouxeram até aos horários de 8 horas diárias de trabalho e 40 horas semanais em cinco dias, nos chamados países desenvolvidos, os trabalhadores enfrentam na actualidade o desafio de manterem aceso o combate de resistência para não deixarem regredir os progressos alcançados.

O principal segredo para o êxito dessa resistência continua a ser a unidade dos trabalhadores na luta, o «juntar cabeças dos operários enquanto classe» e o uso da força assim gerada em defesa dos seus direitos e interesses.

Esse é o trabalho que levam a cabo o nosso Partido, no plano político, e a CGTP-IN, no plano unitário de massas, nas lutas em curso contra a ingerência estrangeira e em repúdio das políticas recessivas e anti-sociais do Governo de direita.



Notas
() Karl Marx, O Capital, livro primeiro, tomo I, Edições Progresso–Edições «Avante!», Lisboa, 1990, pp. 264-265.

() Publico, de 10 de Novembro de 2011, p. 11.

() Ibidem.

() Em nota de rodapé: Idem VIII capítulo, p. 314 – Marx observa que «o protestantismo desempenhou um papel importante na génese do capital pela sua transformação de quase todos os dias santos tradicionais em dias de trabalho.» Pode ainda dar-se o caso caricato de a hierarquia católica portuguesa lhe querer fazer concorrência com 500 anos de atraso.

() Idem, p. 332.

() Idem, pp. 342, 345 e 346.




Texto publicado originalmente na Revista O MILITANTE nº 316



O Mafarrico Vermelho

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