"Se eu morrer, meu corpo mistura com a terra de novo"

"Se eu morrer, meu corpo mistura com a terra de novo"
por  Rosana Bond | Jornal A Nova Democracia



Em 2009, dois anos antes de ser assassinado a mando do latifúndio, o cacique guarani Nizio Gomes da comunidade Guayviri (MS), mostrou numa única frase toda a força de resistência de seu povo: "... não paro (de lutar) porque, se eu morrer, misturo com a terra de novo." Transformar-se em terra, a mesma que abrigou seus antepassados por séculos, é um recado claro dos guaranis sul-matogrossenses aos usurpadores criminosos: combateremos até o fim e não seremos vencidos, porque nem a morte nos tirará daqui.

O assassinato do cacique, em novembro de 2011, por homens contratados por fazendeiros (que após o atingirem com tiros levaram seu corpo, não encontrado até hoje) foi um dos incluídos no último Relatório da Violência contra os Povos Indígenas do Brasil, elaborado pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário). 

Com dados relativos a 2011, o documento informou que 51 índios foram assassinados no país naquele período. O maior número de vítimas, 32, mais uma vez foi registrado no MS. Nada menos que 62,7 % do total de mortos.

Se no resto do Brasil o latifúndio e empresários do agronegócio não costumam ser muito incomodados por seus aliados da classe dominante (gerências municipal, estadual e federal; parlamentares; juízes e outros), no MS a impunidade da violência cometida contra indígenas e camponeses pobres chega a ser escandalosa.

Diz um trecho do Relatório:

"Ao analisar os dados dos assassinatos ocorridos em Mato Grosso do Sul chega-se à constatação de que lá a violência está inserida dentro de um contexto que não se altera há décadas.

Ou seja, as violações aos direitos humanos dos indígenas são históricas e refletem uma realidade onde os indígenas são discriminados pela sociedade envolvente; onde as comunidades vivem em acampamentos de beira de estradas ou confinadas em áreas e reservas diminutas; onde o poder público é submisso aos interesses dos latifundiários ou dos empresários da cana de açúcar, álcool e do gado e contrários aos direitos indígenas; onde o órgão indigenista e os demais órgãos assistenciais não foram estruturados para atender as demandas das comunidades indígenas no que tange aos serviços de saúde, educação, atividades produtivas, proteção e fiscalização das áreas demarcadas e fundamentalmente para garantir que os procedimentos demarcatórios de terras em andamento ou a serem iniciados transcorram de maneira serena e que sejam concluídos."

Em outras palavras: o cenário é de abuso repetido e consentido.

 
Mas a resistência não cessa...

Em 2011 as nações indígenas seguiram travando duras lutas por suas terras, mesmo enfrentando adversários poderosos e brutais. Esses embates se espalharam pelo Brasil de norte a sul, envolvendo milhares de índios das mais variadas nações.

No caso do MS, por exemplo, afirma o Relatório: "Os povos indígenas se mobilizam e enfrentam o poder público, bem como os ocupantes das terras que são reivindicadas e reconhecidas como de ocupação tradicional, embora algumas delas tenham sido tituladas pelo governo federal e estadual e entregues aos atuais "proprietários".

O documento apontou que em 2011 foram registrados 11 casos de conflitos relativos a direitos territoriais: no Amazonas (1), Mato Grosso (1), Mato Grosso do Sul (3), Pará (1), Paraíba (1), Pernambuco (2), Rio Grande do Sul (1) e Santa Catarina (1).

No ano passado os povos trukás e pipipãs, em Pernambuco, continuaram não aceitando a chamada Transposição do Rio São Francisco. Imposto à custa de manobras, disfarces e repressão por parte da gerência Lula, o projeto está provocando desmatamento, diminuição da caça e sérios problemas sociais. Tudo aquilo que o governo PT-FMI jurou que não aconteceria.

Na Paraíba, o povo tabajara lutou contra a instalação de uma fábrica de cimento (Cerâmica Elizabeth) em território por eles reivindicado.

Os exemplos foram muitos, e os números reais provavelmente suplantaram os registrados pelo Relatório.

Abaixo, abordamos alguns casos citados no documento:



TERRA INDÍGENA: Murutinga (AM)


NAÇÃO: Apurinã, Mura


DESCRIÇÃO: A prefeitura de Autazes, cúmplice do latifúndio, contratou um antropólogo para contestar o relatório da Funai no processo de demarcação das terras indígenas dos muras e apurinãs. A situação do processo demarcatório é vergonhosa, pois vem se arrastando desde o início dos anos 1970. São 41 anos de tramóias contra os índios, somadas à manobra da gerência de Autazes de pagar um antropólogo, em 2011.



As décadas de demora vem provocando roubos de áreas pertencentes aos indígenas, cujo território hoje tem o formato de ilhas rodeadas de fazendas de rebanhos de búfalos. Os Muras vivem em pé de guerra. Cada vez que se fala em demarcação "reacende-se a pressão dos pecuaristas e políticos do município", diz o coordenador da Funai de Manaus, Odiney Hayden.



TERRA INDÍGENA: Uirapuru (MT)



NAÇÃO: Paresi



DESCRIÇÃO: Os índios estão em pleno enfrentamento com os latifundiários, que vêm plantando soja em terras pertencentes aos paresis, e devidamente legalizadas. Com descaramento os fazendeiros fingem não saber que aquelas áreas já foram até homologadas em favor dos indígenas. Ao mesmo tempo, nos bastidores, o latifúndio chantageia as "autoridades", ameaçando continuar ocupando o local caso não receba polpudas indenizações. A propósito: plantio em terras indígenas é crime federal.



TERRA INDÍGENA: Acampamentos e aldeias diversas (MS)



NAÇÃO: Guarani Kaiowá


DESCRIÇÃO: Além de conflitos e retomadas atuais de territórios (como Arroyo Korá, em Paranhos), no ano passado os guaranis voltaram a mobilizar-se contra a gigante do açúcar e álcool Raizen (união da transnacional Shell e Cosan) por estimular o plantio ilegal de cana em áreas indígenas, ao comprá-la de empresários e fazendeiros invasores, no município de Caarapó. Os índios aparentemente ganharam a primeira batalha em junho último, quando a Raizen anunciou que cessaria as aquisições das lavouras ilegais. Mas a luta prossegue: falta despejar os invasores e obter a punição da própria usina da Raizen, que vem poluindo rios e vegetação da terra indígena.



TERRA INDÍGENA: Tabajara (PB)



NAÇÃO: Tabajara



DESCRIÇÃO: Uma área tradicional, reivindicada pelos índios, foi ilegalmente vendida para a Cerâmica Elizabeth. Os tabajaras revoltaram-se e, em 9 de novembro do ano passado, retomaram a terra.



Dias depois, viram a chegada de policiais e pensaram que se tratava de uma ajuda enviada pela Funai. Enganaram-se. Era um despejo, em favor da empresa. Cerca de 200 policiais da tropa de choque, cavalaria, cães, batalhão de elite, helicópteros, além de quase uma centena de seguranças privados da empresa, expulsaram os índios de forma violenta.



TERRA INDÍGENA: Rio dos Pardos (SC)



NAÇÃO: Xokleng



DESCRIÇÃO: No ano passado os índios cobraram um posicionamento das "autoridades" contra a instalação de uma usina hidrelétrica, cuja barragem ficará a apenas 1,5 km da comunidade dos xoklengs. As gerências estadual e federal não deram resposta. Então o Ministério Público ajuizou ação civil contra a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FATMA), a Hidrelétrica Pardos S/A e o Ibama, requerendo a suspensão do licenciamento ambiental para construção da PCH Rio dos Pardos.

 Há indícios de irregularidades no licenciamento, que absurdamente mal citou a existência de comunidades indígenas na região, que serão afetadas pela obra.


 
 
 
 
 
 

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