Sobre a construção do partido comunista do Vietnam

Sobre a construção do partido comunista do Vietnam
por Miguel Urbano Rodrigues


"Em contextos históricos, geográficos e culturais muitíssimo diferentes, dois fatores nas revoluções russa e vietnamita foram decisivos para a vitória: um grande partido e um grande líder."

A História não regista uma guerra de libertação similar à do povo vietnamita.

A luta armada contra o colonialismo principiou em l944 e terminou em l975 com a tomada de Saigon ao governo fantoche ali instalado pelos Estados Unidos.

As forças revolucionárias derrotaram primeiro os franceses, forçando-os a reconhecer a independência do Vietnam do Norte.

A intervenção militar americana, em l961, assinalou o início de outra guerra cujo desfecho foi a derrota militar da mais poderosa potencia mundial.

Somente nas epopeias míticas do Gilgamesh babilónio e da Ilíada de Homero se encontra desafio vitorioso ao impossível comparável ao do povo de Ho Chi Minh.

Nela meditei comovido há dias ao ler um livro “La Primera resistência vietnamita”, de Nguyen Giap e Quoq Viet.

Comprei-o em Santiago do Chile durante o governo de Allende, mas não o li então e julgava-o perdido. É uma edição da Grijalbo mexicana, datada de 1970.

A primeira parte foi escrita pelo general Giap, o grande estratego que derrotou os franceses em Dien Bien Phu e depois os americanos numa série de campanhas que lhe conferiram prestígio mundial como génio militar.

Em contextos históricos, geográficos e culturais muitíssimo diferentes, dois fatores nas revoluções russa e vietnamita foram decisivos para a vitória: um grande partido e um grande líder.

Neste pequeno livro (159 páginas) a principal personagem é o Partido. Eu admirava a gesta vietnamita mas tinha dificuldade em compreender como fora possível construir em condições tão adversas uma organização comunista capaz de assumir na luta pela independência o papel de vanguarda.

Giap evoca no seu texto o primeiro encontro, no Norte do Tonquim, com Ho Chi Minh, após o início da II Guerra Mundial.

Em 1940, os japoneses ocuparam sem resistência as colonias da Indochina, mas a administração permanecia em mãos francesas e a polícia e as tropas de Vichy tinham desencadeado uma feroz repressão contra os patriotas do movimento libertador.

Giap evoca o seu primeiro encontro com Ho Chi Minh.

Os Tio Ho -como lhe chamavam-, encontrou-se na fronteira chino-vietnamita com um reduzido número de emigrados que se tinha refugiado no país vizinho. Dele faziam parte Pham Van Dong, futuro primeiro-ministro e Giap, um jovem advogado e professor de História que aderira ao Partido.

Ho Chi Minh deu prioridade à formação politica desses quadros que deveriam voltar ao país para criar no Norte do Tonquim as primeiras bases da Liga Vietminh.

O professor desses cursos foi ele. Discutiu o programa, submetido a apreciação coletiva. As lições, adaptadas ao nível das massas, eram muito simples.

Os militantes atravessaram a fronteira na Província de Cao Bang e iniciaram o trabalho político numa região onde predominavam camponeses da minoria Nung que compreendiam mal a língua vietnamita.

O Tio Ho reuniu-se pouco depois ao grupo. Estabeleceu o seu posto de comando numa caverna, nas montanhas. Giap recorda que ali as condições de vida numa rigorosa clandestinidade eram extremamente duras. Num dia em que, gravemente doente, temia um desfecho fatal, Ho chamou Giap e disse-lhe: «Neste momento a conjuntura nacional e internacional é-nos muito favorável. O nosso Partido não deve deixar passar a oportunidade. Devemos assumir a direção da luta para conquista da independência, custe o que custar, mesmo que arda toda a cordilheira vietnamita (…) Quanto à luta armada, a partir do momento em que as circunstâncias sejam propícias, será preciso iniciá-la com determinação, mas sem esquecer a consolidação das nossas bases para evitar qualquer tropeço».

Parecia ditar a sua última vontade. Felizmente curou-se e dirigiu a luta por muitos anos.

Ele sabia –sublinha Giap- «comunicar-nos maravilhosamente a sua inquebrantável fé na Vitória da revolução (…) Colocava o problema a debater e dava-nos algum tempo para refletir sobre ele. A seguir realizavam-se a reunião e o debate (…) quando depois da discussão e adotávamos as resoluções finais exigia que as cumpríssemos custasse o que custasse».

Sempre acossados pela repressão, organizaram-se tao bem que, apesar das privações –a alimentação era escassa e frugal, à base de arroz e frutas- conseguiram criar naquela região selvática uma fundição para o fabrico de granadas e armas toscas, um jornal para os militantes, o «Vietnam Independente», e um hospital de campanha.

Em 1944 quando De Gaulle, após a batalha da Normandia, entrou em Paris e formou um governo com participação dos comunistas, agravaram-se no Vietnam as contradições entre franceses e japoneses.

O movimento de resistência cresceu torrencialmente.

Ho Chi Min, que saíra das prisões de Chiang Kai Chek, considerou que no Sul não havia condições para desencadear a luta armada. O Exército de Libertação do Vietnam não estava ainda preparado para a insurreição. Era indispensável aprofundar as relações entre os guerrilheiros e as populações.

Quando o Japão capitulou em 1945, eclodiu no Tonquim a Revolução de agosto.

No comando das Forças armadas da jovem Republica Democrática do Vietnam, Nguyen Giap desempenharia um papel histórico.

Um povo e um partido heroicos

O texto de Hoang Quoc Viet -coautor do livro- incide sobretudo sobre a construção do Partido realizada numa atmósfera de bárbara repressão.

Hoang Quoc um sindicalista, que foi presidente da CGT vietnamita, participou muito jovem nas greves de 1929 no porto tonquinês de Haiphong. Viajou para França onde tomou contacto em Marselha com camaradas do PCF. De regresso ao Tonquim no ano seguinte, foi eleito para participar como delegado na primeira reunião do Comité Central do então Partido Comunista da Indochina. Foi preso na véspera com outros camaradas. No cárcere de Haiphong foi torturado com selvageria pela polícia francesa durante dez dias consecutivos.

Transferido para o presídio central de Hanói, foi dali embarcado em 1931 num navio para a penitenciária de Saigon. Metido num porão, acorrentaram-no com dez camaradas numa barra de ferro que deviam carregar em todas as escalas enquanto eram chicoteados pelos guardas.

Condenado a prisão perpetua, o destino final era o sinistro presidio de Poulo Condor. O capítulo em que recorda os anos que ali passou é esclarecedor sobre a sua fibra de comunista. A água do banho era infecta, provocando feridas e eczemas. «A comida -escreve-era ainda mais repugnante. Era servida em travessas de um metro nunca lavadas. Havia também uma «sopa azeda»: peixe salgado cozido em sumo de arroz fermentado. Demos-lhe o nome de «sopa moto» porque provocava violentas diarreias cujos estampidos soavam durante dia e noite na fossa sanitária».

Muitos presos morreram naquele inferno.

Hoang Quoc diz ter forjado ali a sua têmpera de comunista.

Com outros camaradas formou uma célula comunista e conseguiram em luta permanente autorização para abrir poços, plantar legumes, criar galinhas, organizar uma equipa de futebol. A organização dos presos funcionou tão bem que em todos os edifícios do presidio havia células comunistas. Uma delas criou um jornal, «Opiniões comuns», que circulava clandestinamente. Criaram também uma biblioteca clandestina com os clássicos do marxismo. Quando colocaram numa parede um mapa da URSS e outro das regiões da China controladas por comunistas, o diretor do presídio, mandou destruí-los e chamou-os. Foram todos espancados com cassetetes.

Em 1936, quando o libertaram durante o governo da Frente Popular, Hoang Quoc foi inicialmente colocado pelo Partido no jornal «Viver», de Hanói. A partir do ano seguinte assumiu a direção política de todos os órgãos de comunicação social do Partido no Tonquim

Recorda que nesses dias se entregava totalmente ao trabalho revolucionário, dedicando-se sobretudo aos temas ideológicos. O funcionamento do Partido, então por breve tempo numa semi clandestinidade, era o de uma organização marxista–leninista cuja direção na teoria e na prática tomava como exemplo a democracia socialista dos revolucionários bolcheviques de 1917.

Sem surpresa, nas vésperas da Guerra Mundial, Hoang, expulso de Hanói pela polícia, foi realizar trabalho político para as montanhas junto das minorias étnicas. Contribuiu para que essas selvas remotas, quase inacessíveis, se transformassem –é ele que o afirma- «no berço da Republica Democrática do Vietnam como reduto inexpugnável da nossa prolongada resistência»

As condições de vida na região eram tão primitivas que no início dormiam em cima de estábulos de búfalos.

Um dia quando os sinos de uma igreja próxima tocaram a rebate, chegou-lhe a notícia da derrota da França.

O trabalho revolucionário ganhou um ritmo novo, muito intenso. Hoang dirigiu uma mensagem aos soldados franceses, sugerindo que seguissem o exemplo dos communards de 1871 e voltassem as armas contra os colonialistas em vez de as usarem contra a insurreição dos camponeses.

É belo o capítulo em que evoca a VIII Conferencia do Comité Central, realizada numa cabana da selva em que a única mobília era uma tábua de bambu e os participantes se sentavam em troncos.

Cantou se a Internacional, e o discurso de encerramento foi pronunciado por Ho Chi Minh, anunciando a chegada de «um novo dia”. No final exigiu a destruição das cópias de todos os documentos aprovados.

Os camaradas que deveriam transmitir pelo país as decisões tomadas, teriam de o fazer oralmente. O tio Ho temia que caíssem nas mãos do inimigo.

As páginas dedicadas à preparação da insurreição são comoventes.

Hoang seguia para o Sul em missão quando numa aldeia do delta do Rio Vermelho viu um carro que tinha içada uma bandeira vermelha com a estrela dourada. Um auto- falante que transmitia canções revolucionárias informou de repente: «As forças insurrecionais sob a direção do Viet Minh tomaram Hanói às quatro da tarde. Na capital o poder está totalmente nas mãos do povo».

O grande desafio

Em 1975, derrotado o governo títere de Saigon e unificado o país, novos e complexos desafios se apresentaram ao Partido.

Em 1981, numa e entrevista ao jornalista americano Stanley Karowe, Pham Van Dong, então primeiro-ministro, abordou o tema. Afirmou que os desafios do presente e do futuro seriam colossais, muito mais complexos do que haviam previsto.

«Sim –disse-, derrotamos os Estados Unidos. Mas não temos comida suficiente, somos subdesenvolvidos economicamente. Governar um pais é mais difícil do que vencer uma guerra».

Lucido, anteviu os tremendos problemas que o seu povo teria de enfrentar.

Hoje o Vietnam tem 90 milhões de habitantes. É um povo alfabetizado que reconstruiu uma economia arrasada pelo imperialismo, com enormes extensões de terras envenenadas por herbicidas.

Os desafios no futuro imediato são complexos num mundo hegemonizado pelo imperialismo estado-unidense.

Mas a história do seu heroico partido justifica a esperança

Neste início do terceiro milênio da Nossa Era, quando muitos partidos comunistas tendem a social democratizar-se, reeditar e divulgar o maravilhoso livro de Giap e Hoang Quoc será uma contribuição revolucionaria para o fortalecimento da confiança dos comunistas na vitória final sobre o capitalismo.







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